(44) 3222-7836

10 dezembro 2008

"A Enchente"

"Silvedora e Sezefredo se encontra­ram, se gostaram, se casaram, se enlearam num xodó de fazer medo.
Medo de os outros botarem mau olhado e o amor gorar, se reverter, se atrapalhar, desmastrear e súbito acabar. Mas não gorava não. Quanto mais passava o tempo, mais calor no assanhamento, ma­is amor no coração. Na primavera e no verão, também no outono e mais até no inver­no, era aquele achegamento com juras de amor eterno.
Era de noite, de tarde, de manhã, de madrugada, toda hora para eles era hora de agarra-agarra, interminável saborosa farra, beijo no queixo, cosquinha no atrás-da-orelha, amor sem-pausa estava ali.
Só quando ele ia para o eito é que os dois se desjuntavam. Morantes num pé de serra, ia ele todo dia para o roçado, vol­tava embalado na hora do almoço e no fim da tarde, guloso dos carinhos dela, mais até que das gulodices da panela.
E a bóia era boa. A sopa de inhame, o caldo d'unto com taioba e couve, o feijão preto, a canjiquinha amarelinha, a costeleta de porco. Ele chegava de enxada no ombro, o corpo suado, um asso­bio na boca soprando dengosas modinhas, largava a tralha no terreiro e ti­bum no rio para o vespertino asseio. Silvedora já esperando com a roupa dele limpinha na mão, para as ale­grias da noite.
Só eles os dois, e as estrelas no céu e um bicho ou outro piando nas redondezas. Depois da janta, a viola para a digestão. E zás de novo na cama, para a festa do amor-sem-fim.
Só que tem que mas porém Silvedo­ra de repente embarrigou. Sezefredo e ela por uns tempos só pensavam no bebê. Que nasceu robusto e que na pia o nome de Ambrósio recebeu. Primogênito de uma ninhada de nove: três meninas e seis guapos garo­tões. Silvedora mal esvaziava e já de novo arredondava. Mas nem por isso o amor diminuía, antes pelo contrário mais crescia.
Até que deu aquela enchente doida. Trinta dias chovia sem parar. Dilúvio parecia. Da serra desciam grossas enxur­radas levando as lavouras de arrasto. Era água de não mais acabar. O rio em frente da casa roncando, engordando, troncos batendo nas pedras, bichos do mato ro­lando embolados na correnteza, e não parava de chover.
Um estrondo na madrugada. Era o curral caindo. Sezefredo acordou num susto, viu o rio levando as vacas, puxando junto o galinheiro, o cavalo, as cabras. Só a casa deles ainda em pé, sustentada nas pilastras altas. Ilhados ali, viam as águas já entrando pelas portas, Silvedora e a criançada chorando, rezan­do, Sezefredo pra-lá-pra-cá com uma corda na mão.
O pé-de-manga tinha tronco forte, haveria de resistir. Pela janela atirou a corda, laçou um galho. O rio crescendo, rosnando. Sezefredo mandou as crian­ças se agarrarem na corda e subir na ár­vore. Mandou também Silvedora, que ainda conseguiu salvar-se a tempo.
Ele Sezefredo rodopiou águas abaixo misturado com os pedaços da casa. Pa­redes, soalhos, alicerces, telhado, móveis, panelas, todo o seu ninho engolido pelo furor da correnteza. As crianças e a mãe olhando do alto da árvore sem nada po­der fazer.
Parou na manhã seguinte a chuva. Silvedora desceu com toda a ninhada. Nessas horas chorar não vale; é levantar a cabeça e enfrentar. Re­começar. Reconstruir. Chegou todavia um recado.
– Dona Dora: é pra senhora prepa­rar um feijãozinho aí, que Seu Fredo vem pro jantar. Ele mandou dizer que não morreu não. Salvou-se montado num pé-de-bananeira, mas engastalhou numa peroba e tá agora só espe­rando baixar mais um pouco o rio pra ele descer de lá.
No chão mesmo. Foi assim ele chegar e Sezefredo mais Silvedora mandaram as crianças sair de perto, e pimba num mata-saudade de dar gosto. Donde nasceu o nono fruto, chamado Pluvioso da Sil­va, que já encontrou a casa de novo er­guida, a lavoura refeita, o curral e o gali­nheiro mais bonitos do que os que a en­chente carregara."
**
Antonio Augusto de Assis -A.A de Assis, poeta da Academia de Letras de Maringá e um dos maiores trovadores do Brasil. O conto "A Enchente" foi premiado este ano em concurso nacional promovido pela Academia Niteroiense de Letras, em parceria com a Imprensa Oficial do Rio de Janeiro.